sexta-feira, 24 de dezembro de 2010

O sol

Foi tudo meio assim, sem meio, com fim. O começo tinha cheiro de fumaça, um cachorro na calçada, gente se esbarrando, gente se escapando. Começo desajeitado, com pressa, mas depois as mãos grudaram, as histórias falaram, o sorriso saltou no rosto, os olhos brilharam e os braços se ajeitaram.

As palavras dele não sabiam, mas os ouvidos dela cantavam. Era como se os sonhos todos, afogados, viessem para a beira da praia e caminhassem. Algo dentro dela dizia que era possível encher-se de sol depois do nublado tempo, desenraizar os pés dos territórios passados e mover, mesmo que sem rumo, em direções contrárias.

E o sol foi indo, bem devagarzinho, iluminar outras regiões.

Ela respirou fundo. Sabia que já não era mais a mesma. Era sol nos olhos dela.

 
 
Texto: Duane Valentim
Imagem: "Sol e Lua"

segunda-feira, 6 de dezembro de 2010

Aquele dia

Ela saiu correndo de casa, como sempre brigando com o relógio. O cabelo todo desarrumado, mochila nas costas e foi. As pernas permaneciam no ritmo acelerado que podiam até que bambearam. Pararam. Pararam assim que os olhos trombaram, no susto, com a imagem que não queriam ver.

Respirou. Viu os degraus. Brigou com as pernas e correu. Passou em frente. Não respirou. Olhou. Doeu. Sangrou. Uma lágrima saltou até as pontas dos pés. Outras vinham surgindo, e surgindo e surgindo. A boca emudeceu.

Correu o mais que pode para levar os olhos para longe. A respiração voltou. Sentou em um banco. Tremia ainda mas tinha fugido. As pernas reclamaram mas entenderam que é preciso correr para não doer. E assim fez. E assim faz.



Texto: Duane Valentim

sexta-feira, 5 de novembro de 2010

Estique

Se estique menina...Coloque os pés pra fora dessa cama, seque esses olhos e se estique. Estique os braços até fazê-los tocarem o céu ou uma nuvem qualquer, mas alongue esse seu corpo e saia de dentro dessa toca. Ninguém mais aguenta te ver assim, nesses ossos corcundas, nessas unhas sujas, nesses cabelos sem corte e de roupas velhas. Ninguém mais aguenta seu silêncio mentiroso, seu sorriso opaco e seu caminhar lento.

É tudo incompatível mesmo. É tudo do avesso mesmo. Tudo ambíguo. Conforme-se sem questionar, é assim que se faz nos dias de hoje: quanto mais interrogações colocar, mais se abre pra machucar. Pare tudo e se estique. Pescoço, cabeça, coração...já venceu tudo mesmo, estragou, agora é só se esticar e sorrir e caminhar como se fosse tudo novo. Vale fazer tudo igual pensando que é novo. Vale apodrecer o novo achando que é velho. Vale tudo, basta se esticar.

Estique as pernas, ouvidos e olhos. Olhe lá longe e não sinta nada. Olhe lá pra trás e não sinta nada. Não olhe nada e sinta o que quiser. Só não vale estacionar! Vai esticando que logo você alcança a bala que te atravessou a garganta e parou no peito. Aliás, tudo vai parando no peito. É bom às vezes limpar, jogar fora as sujeiras acumuladas. E se lá no fundo ainda houver alguma poesia na memória, se estique ainda mais: é de poesia que a alma se envenena.



Texto: Duane Valentim

sexta-feira, 1 de outubro de 2010

Ela

Só ela consegue esbarrar os olhos nos meus e abrir um largo sorriso demorado escondendo o tempo nublado. E é dela o timbre da voz fina que vibra, em tempos de saudade, nas paredes da memória num dia vazio e solitário. Vem do abraço dela o cheio doce dos cabelos embaraçados, o gosto de acordado num beijo tímido e calado na manhã silenciosa.

E são dela as palavras frias em que me reconheço. E é dela minha tarde de raiva, minha unha roída, o livro num canto parado. É pra ela, só pra ela que aperto os olhos antes de dormir com medo de descobrir que eu não estava certo.

E só ela se sente segura por ter minhas mãos entre as dela. Só ela ainda acredita em mim quando nem eu mais acredito. E é por ela que eu ainda minto. É por ela que ainda vou querendo ficar.

E é da vida dela que sinto falta, dos sonhos dela, das besteiras dela, das músicas, das piadas sem hora, do abraço sem braço, do rosto amassado, da conversa nunca terminada. E é por ela que junto dela não estou.



Texto: Duane Valentim
Imagem: "Retratto do homem triste"

domingo, 22 de agosto de 2010

Divergir

Hora de despertar.
Os olhos se fecham doloridos e a cabeça acorda.
Os pensamentos voltam todos, mas o corpo se levanta.

Hora de voltar. 
As pernas caminham até o ponto de ônibus.

...

Os olhos passam por tudo o que é fixo do lado de fora da janela.
Passam árvores e casas do lado direito.
A mão esquerda, teimosa, procura o corpo ao lado para repousar. 
Corpo ali não há.

Os dedos ficam gelados, os olhos molhados, a garganta se fecha, e mais uma lágrima corre em direção ao queixo.
A cabeça tomba no vidro e os olhos gritam.

E o ônibus segue: “por que tão rápido?”
E as pernas se encolhem contra o corpo: “cada qual com seu jeito de afastar a dor.”

E o ônibus para. As pernas descem.
O primeiro segue. A segunda, cala.




Texto: Duane Valentim

sexta-feira, 20 de agosto de 2010

O lá aqui

O cá nunca esteve tão longe.
Cá chove tristezas e decepções.
Tem frio mas senti saudade do inverno rigoroso que acabou.
Tem flores mas não vê. Tem verão mas não senti.
O cá partiu de si. Não ouve, não fala, não para.
Desacredita, se irrita, se fere e fere. Queima.

O lá, lá está.
Viajando por novos continentes, com invernos e chuvas ausentes.
Não se lembra do cá, não fala, não senti.
O lá foi pra longe junto com a nova estação.
Verão, sol, água. Alegria que não tinha.
O lá agora irradia o céu de outro hemisfério.

E o cá, onde?



Texto: Duane Valentim
Imagen: Monet

domingo, 1 de agosto de 2010

O Eu no Outro. O Outro em Mim.

O mês começou com um espinho cravado no dedo e outro no coração. O desespero alimentava e as lágrimas matavam a sede. O rosto pálido, os lábios cortados, as unhas roídas. A cama era o palácio e o sono era quem adiava as dores.

Foi para a rua mudar a paisagem do quarto. Sentou-se no banco de uma praça solitária. Chorou mais um pouco para não perder o hábito. Desligou o volume da rua e concentrou-se no pior de si.

Olhou uma criança que passava: pés no chão, rosto sujo, roupa rasgada.

Foi a primeira vez que sentiu vergonha de seus problemas.



Texto: Duane Valentim

quarta-feira, 28 de julho de 2010

A Manhã de Domingo


Domingo preguiçoso. O sol da manhã batia na porta de vidro acordando os olhos sonolentos da noite anterior. Noite curta e longa. Noite risonha, de TV ligada, farelo de pão no chão, de tênis jogado, de torneira da pia pingando.

O domingo, de tão preguiçoso, se escondeu debaixo do edredom e nem deu ouvidos pra manhã que o acordava. Manhã feliz e triste. Manhã apressada, de banho tomado, de café sobre a mesa, de cama arrumada.

O domingo, então, acordou. Levantou-se, caminhou até a porta de vidro, abraçou a manhã e sorriu: “bela manhã de domingo”. E a manhã se ensolarou toda!


Texto: Duane Valentim
Imagem: Romero Brito

domingo, 25 de julho de 2010

Amanhecer


Acenderam as luzes da casa. Ouvi alguns passos lentos caminharem até a porta do quarto. Senti um cheiro conhecido tatear minha memória. Um gosto de saudade apertou a garganta e encheu meus olhos de água. Minhas mãos calaram. As poeiras do meu corpo correram para debaixo da cama. Era ele que chegava e a tanto o esperava.

Quando a porta do quarto se abriu, meus olhos grudaram aos dele. A respiração travou assim como os músculos sedentários da espera. Meus lábios tremiam na alegria nervosa. Ele disse algo que só meus olhos ouviram. As lembranças em mim dançavam. Ele voltou e a tanto o esperava.

Um sorriso trombou com uma lágrima saudosa que caia. Lembrei de toda poesia guardada. Lembrei da dor da ausência e apertei meus olhos a fim de apagar qualquer partida. E foi dentro de um abraço demorado que todo meu espaço de felicidade se enfeitou. A tanto eu o esperava. Como é bom saber que voltou!




Texto: Duane Valentim    (28/04/2010)

sexta-feira, 9 de julho de 2010

Você aqui

Tardes de sol e nuvens brancas.
Não há previsão de chuva
Com você aqui dentro.



Texto: Duane Valentim

quarta-feira, 7 de julho de 2010

O Fim

Horas de soluço_ rosto molhado, mãos frias, garganta seca.
No peito_ o aperto, o amargo, o fardo.
A voz se comprime denunciando o medo.
Os olhos nublados procuram consolo.
As pontas dos pés sentem as lágrimas que caem.

Medo.

Todo corpo se prepara para fugir da dor de ouvir o partir.
A porta se abre.
Só restou eu aqui dentro.




Texto: Duane Valentim
Imagem: "Tristeza", Hugo Espírito

sábado, 3 de julho de 2010

Primeiro Haykai

Manhã de chuva.
Estás em mim,
E isso basta.



Duane Valentim

Manhã Fria

Era uma dessas manhãs frias, em que os ossos acordam espremidos dentro do corpo. Levantei-me e fui até a varanda espiar se o frio de fora era maior do que o frio de dentro.
Um sol preguiçoso batia na grama ainda molhada pela noite anterior. Meus olhos inquietos se esbarraram no jardineiro cor de cansado que sentado estava na frente de uma flor. Flor feia, cor de nada. Apagada e pequena e fraca. E ele para ela olhava, conversava, cuidava...O jardineiro e a flor sem flor. Um diálogo de silêncio. Um fala. O outro cala e senti.

Eu, curiosa, perguntei ao jardineiro o que de tão especial o prendia diante de tal flor. Ele, numa simplicidade de quem apenas sente, sorriu e respondeu que por ela lhe dar tanto trabalho, lhe tinha tanto amor.


Texto: Duane Valentim
Imagem: "Flor Triste"

quarta-feira, 26 de maio de 2010

A Menina


...só precisa de um tempo para chorar e esvaziar o tudo que pesa dentro dela.

E já se foi o tempo de não ver o tempo.
Já se foi o tempo de pernas jogadas no sofá, de controle remoto nas mãos, de olhos para o nada do chão.

Agora o tempo é outro...

Bem vinda ao melhor de sua vida!
Bem vinda ao mágico do tempo que é sempre outro: o tempo dos outros!

Cuida do agora, menina, porque o seu tempo de menina se escondeu.
Pensa no amanhã, querida, porque ele também haverá de se esconder. Acostume-se com a solidão de agora que por mais que seu sorriso reflita alegrias, por mais que sua sala tenha visitas, por mais mentiras que acredita, você sabe que ninguém te habita.

E eu sei que ela só precisa de um tempo para chorar e esvaziar o que acumulou dentro dela. E ela quer?

E ela grita dentro de si mesma (enquanto dançam frenéticos seus pensamentos):

-- Tenho alegrias! Tenho alegrias!!

Cale-se, menina. Você sabe que é construída de mentiras, de rotinas, de coisas que queria ter, de coisas que queria ser. Coisas que não vem e que não passam.

Mas se te anima, menina, neste mundo não há gente diferente de você das que estão em pé.


Texto: Duane Valentim
Imagem: Amedeo Modigliane

sábado, 17 de abril de 2010

Na Rua

Eu ia pela rua. A calçada era mais segura, mas eu preferia a rua.
Ia descendo contornando a calçada quando senti que havia esquecido a chave de casa. Parei para checar e demorei para encontrá-la. Mas estavam lá, perdidas no fundo da bolsa.

Olhei para frente e vi um rosto conhecido. Sim, era ele, vindo de encontro. Mas ele, sempre mais seguro que eu, andava pela calçada. Mas eu não tinha medo dos carros. Tinha medo dos olhos dele nos meus que tem o dom de congestionar tudo o que dentro de mim dorme.

Respirei fundo e caminhei querendo permanecer parada. Ele ia chegar perto. Ele ia parar e dizer algo.

Segurei a respiração e sequei na calça as mãos que suavam. Ele ia me olhar. Ele ia parar e me tocar com aqueles olhos frios e úmidos.

Apertei forte a chave entre meus dedos. Mordi meus lábios secos e saudosos.

E ele vinha. Lentamente.

Dois passos de mim.

Um passo.

Em mim.

Ele seguiu pela calçada.

Eu, pela rua. Doída e sem fim.



Texto: Duane Valentim

domingo, 14 de março de 2010

Vá com o Circo

E somos todos montados de passados. Todos nós. São gotas e gotas de alegrias e chuvas e chuvas de agonias. Tudo passado e que carregamos todos os dias no espaço sem fim da memória.

Os passados todos juntos poderiam ser apenas passados, mas não. Trombamos com o passado na primeira esquina ao sair de casa, e ele, na certeza de te ver, faz que não vê. Coisas passadas e mal resolvidas. Coisas doídas e sofridas. Vida.

Mas ficamos aqui, prontos para a apresentação do circo. Prontos para fazer a platéia sorrir da nossa cara. Prontos para ver o circo levar os anos de apresentações, anos de solidão a dois. Prontos para sermos aplaudidos pelo ruído da voz que grita aqui dentro. Voz que chama, que é chamada. Voz que cansa e tem raiva. Voz que odeia a sensação do ridículo de se ver passar o passado, e ao passar, fazer não ver.

Continue andando e me deixe aqui. A platéia tem mais para rir. Ainda somos capazes de sorrir para a foto. Sorria! O passado não fica gravado na superfície da face, só nas profundezas das ironias.

Vá embora com o circo. Eu fico. Antes palhaça de mim.



Texto: Duane Valentim

quinta-feira, 25 de fevereiro de 2010

Singela

O silenciar discreto no barulho alto daqui de dentro.
O calar a voz rouca que teima em sair.
O falar entre sorrisos a dor que quer existir.


Abrir os braços para seus passos,
meu sorriso para seu riso,
meu dançar para seu aproximar.


Luz do acaso amanhece na janela.
Mais uma noite se encerra.
A noite que foi só dela.



Texto: Duane Valentim

sábado, 13 de fevereiro de 2010

Nossos Mares

Nossos mares possuem ondas que trazem para superfície areias que lá no fundo, dormindo estão.
As ondas voltam e vem e vão...

Nossas águas percorrem oceanos diversos. Nossos ventos nos levam a caminhos incertos. 
Estamos distantes, mas perto.

As chuvas e tempestades sempre foram mais intensas em minhas águas. Os barcos que por mim percorrem, com a esperança de alegrias encontrarem, sempre naufragam no rodamoinho mais próximo das terras da lembrança. 
E os barcos vão e vem e não voltam.


Nossos mares não se buscam, mas se encontram em territórios conhecidos de águas antigas que nos formou. Esses encontros são cheios de marés de sorrisos, de luas cheias e estrelas do sul. A noite corre e nossas correntezas nos devolvem a distâncias anteriores.

O tempo devolve a calmaria.
Novos barcos se aproximam.
Novos dias...

E de todos os vais-e-vens das ondas que trazemos, nossos mares sabem que é inevitável não nos transbordarmos.


Texto: Duane Valentim
Imagem: Elvio Santiago

domingo, 7 de fevereiro de 2010

O malabarista

caminhando ao som do silêncio
sorrindo as cores do céu nublado
alongando as ferrugens do acaso.

dias que chegam e que se vão,
dias que não chegam e estão,
dias em vão.

traga outro copo:
seja bem vinda Felicidade!


Texto: Duane Valentim

terça-feira, 26 de janeiro de 2010

Le Cirque



E o vento se veste de cinza e corre por entre as ruas onde ela está. E é fácil de enganá-la. Basta assoprar algumas palavras aveludadas, assoviar no ouvido da dor ou fazê-la fechar os olhos diante da poeira que ele próprio levanta.

E o vento se faz de amigo e se senta diante dos pés dela. E é tão fácil de fazê-la sorrir. Basta agitar os cantos da alma, bater as portas antigas e escancarar as janelas de vidro que ela insiste em lustrar.

Mas o vento vem vindo de longe. Nunca se sabe qual das esquinas o fará parar.

E é difícil de enganá-lo.
E ela não o vê.
E ele se aproxima.
E ela abre os braços.
E ele a envolve.
E ela não respira.
E ele passa. Levou tudo dela.
Que palhaça!


Texto: Duane Valentim
Imagem: Filme : The Science of Sleep

domingo, 24 de janeiro de 2010

Valsinha



Era a noite da ansiedade.

Ele entrou pela porta e correu seus olhos de encontro aos olhos dela. Ela sorria com o coração e apenas esboçou um leve gesto de cumprimento.

O som da voz dele fazia com que os seus pés se encolhessem por de baixo da mesa e se agitassem. O sorriso macio e calmo dele abria nela as portas da imaginação. Os sonhos todos saltavam pelo brilho dos olhos dela.

Era a noite da ansiedade.

As mãos dele tocaram as dela. Trocaram algumas palavras que ela não lembra. Ela procurava nele os sons. Ele tocou. Ele tocou para ela todas as músicas que há tempos ela não ouvia.
Ela sorria e sentia. Ouvia e sorria.

Era a noite da alegria.

Eles se completaram de poesias no silêncio de um abraço infinito. E eles se gravaram pelos olhos um do outro e se entenderam com os dedos enlaçados. Despediram-se infinitamente da noite tranqüila e veloz.

O sino tocou.

Serão as noites da saudade.



Texto: Duane Valentim
Imagem: Noite estrelada - Van Gogh

quinta-feira, 21 de janeiro de 2010

Duplo

São feitos de palavras, de sorrisos perdidos e olhares trombados.

São mãos que se tocam, se prendem, se afastam.

São feitos de açúcar, de algodão doce e chocolate.

São pés que se esbarram, se aproximam, se gastam.

São feitos de pôr-do-sol, de arco-íris e de chuva fina.

São beijos que se buscam, se encontram, se calam.

São feitos de sal, de água e de mar.

São cabelos que se soltam, se enlaçam, se prendem.

São feitos de sonhos, de magia e de alegrias.

Bagagens...



Texto: Duane Valentim

sábado, 16 de janeiro de 2010

A Espera


E ela esperou. Não sabia bem o que, mas esperou. Ficou num canto calada vendo as pessoas passarem de lá pra cá. Cutucou todos os cantos de seus dedos, enrolou fechos de cabelo. Bateu os pés num ritmo alheio ao som que tocava e sorriu para todos os conhecidos que passavam.

Ela sentou e esperou. Olhou para si e sentiu pena do que via. Por que esperava? Qual o momento mentiroso que a fez querer esperar? Para que olhar tanto para a porta, ele não vem. É tarde. 

Ela se foi. Calou a lágrima que insistia em gritar, engoliu o soluço que insistia em saltar e trancou o coração que insistia em amar.

E ela se foi. Andou pelas ruas vazias iluminadas pelo silêncio de sua solidão. Tinha todos os motivos para entender que ele não viria, mas ainda olhava para trás na esperança de ver surgir, entre uma esquina e outra, o rosto que tanto imaginava.

E ela calou.

Ele não veio. Machucava. Se ele viesse, depois machucava. Feridas machucam perto, longe, sem precisarem ser cutucadas. São feridas e ele nem sabia o que nela havia cravado. Eis o mal de todo ele que rouba o ela do hoje sem saber que amanhã ela espera. E o amanhã vem. Ele não.


Texto: Duane Valentim
Imagem: Modigliane

domingo, 10 de janeiro de 2010

Acalanto

Sorria menina, sorria. Há tanta gente te olhando. Sorria para disfarçar todos os buracos que carrega ai dentro. Há tanta gente por perto. Há tanto detalhe encoberto.

Se arrume menina, se arrume. Maquie toda e qualquer imperfeição. As gentes não merecem saber da sua solidão. Pinte os olhos e a boca com cores de fingimento e passe um pó para tapar os trincos da agonia.

Alise cada fio de dor, cada frizz de amor, cada gesto de pavor. Seque as lágrimas e sorria, menina. As gentes não se importam com o que você carrega. As gentes só se importam com o como você carrega. Não vale chorar, não vale sofrer, não vale gritar, não vale se esconder.

Apareça menina, apareça. Sempre sorrindo. Cabeça erguida. Passo firme. As gentes precisam saber que você esta bem. Precisam se distrair olhando para os detalhes de fora e assim, nunca repararão no fardo que carrega ai dentro.

E entenda menina, entenda...haverá um momento em que fingir para as gentes inclui fingir para si mesma e que neste jogo de faz de conta, um dia você se dá conta que o vazio que te ocupava foi preenchido por momentos opacos, tristes e mentirosos e que, por terem sido acumulados durante tanto tempo, já não mais descolarão. E que por terem sido acumulados durante tanto tempo, nem mais te incomodarão.

Sorria menina. Sorria...



Texto:  Duane Valentim
Imagem: Renoir

segunda-feira, 4 de janeiro de 2010

Coxia

Foi a primeira vez, depois de tanto tempo, que meus olhos tocaram os seus carregando mãos diferentes.

Já havia visto e sentido outros carregares seus. Já havia sentido e doído de diferentes formas. Já havia visto seus olhos em outros olhos e suas mãos em outras mãos.

Já havia sorriso com o peito ferido. Já havia fingido não ter visto e, entre tantas e tantos, já havia aprendido a não fazer doer.

Eis que pela primeira vez, ocupados, meus olhos não te buscaram. Fecharam-se diante do ar fresco da noite e calaram outros olhos, que não os seus.

E na aventura desaventurada de qualquer madrugada silenciosa, fechei meus olhos cansados e tristonhos para todo e qualquer movimento que me fizesse recordar você.

E foi a primeira vez que vi sem precisar te ver.



Texto: Duane Valentim
Imagem: Pintores D'Avinci (Kim Molinero)