segunda-feira, 30 de janeiro de 2012

Do jeito que é

Eu queria poder abraçar esses seus olhos sedentos, tristes e risonhos. Eu queria poder entender essa sua alegria que gosto de ter perto, e esse seu jeito dolorido de me gostar. Eu queria poder guardar sua mão aqui com a minha e dizer que sua companhia me faz bem, que não me importo com esse seu cabelo sem pentear ou com seus pés no sofá. Eu queria entender o quanto você é capaz de me deixar à vontade, e de ser tão mulher dentro dessa menina. Mas você se esconde dentro dessa naturalidade toda, e eu acabo fingindo que acredito na minha segurança e alimento a sua, e a gente não se alcança.


Texto: Duane Valentim
Imagem: The way I am - Indrid Michaelson

terça-feira, 17 de janeiro de 2012

Lacuna de mim

Teve um ano aí que decide morar sozinha. Conhecer meus barulhos e meu silencio. Mas depois o tempo foi passando e minha tão desejada solidão precisou se ocupar dos barulhos alheios.
Eis que um homem se mudou aqui do lado. Pronto, estava casada minha vontade de ouvir com a novidade dele do lado de lá.

E então eu sabia tudo, a hora que ele chegava, a hora que ele saía, se estava animado (dependendo a música que ouvia), se estava irritado (pela batida da porta do carro), se ia sair (pelo perfume dele), se trazia visitas (pelo perfume não - dele)... e assim fui ocupando meus momentos solitários criando a imagem desse ser que trombei duas vezes (lógico que por mim calculadas): ele indo para o trabalho e eu levando o lixo para o lado de fora; ele voltando do trabalho e eu saindo para lugar nenhum. Depois disso, me escondi. Gostava mais de imaginar como ele era do que ver de fato como ele era. Assim ficava mais fácil acreditar na mentira que eu criava.
E era tão doce a sua companhia. Eu parava o nada que fazia só para ouvir sua voz grossa falando com o cão nos fundos da casa. E eu odiava as risadas lentas das moças que por lá ele trazia. Odiava todas elas e torcia para o cão comer a bolsa, o sapato, a perna de quem lá estivesse. Na verdade, o ódio vinha da vontade de ser uma delas, sem a bolsa, sem o sapato, mas com pernas. Só as pernas, aliás.
E em uma dessas manhãs, não acordei com o alarme do carro dele. Não escutei mais nada o dia todo. Logo imaginei uma viagem. O cachorro lá não estava. Uma semana, duas, e nada. E não é que o desgraçado foi embora! Assim, sem me avisar! Eu, que tantas noites fiquei esperando ele voltar para casa. Eu, que sabia dele mais que todas as pernas que por lá passeavam. Logo eu...tão sozinha...
Para quem é que eu vou desviar a atenção que tinha que ser minha?


Texto: Duane Valentim

quinta-feira, 5 de janeiro de 2012

Rajada

E o que me corrói aqui dentro, não é essa sujeira toda que já me acostumei a ver, não é essa falta de caráter que transborda e nem essa dissimulação toda que ri de si própria.

O que me queima aqui dentro, não é o tempo gasto, o tempo não dormido, nem o tempo que deixei ir escorrendo entre os meus sonhos frustrados.

O que me corrói, o que queima, o que dói, é o queixo travado e os dentes apertados. O silenciar do grito de revolta.

E esse tempo todo, essa mentira toda. Os dedos corroídos, as pernas atrofiadas. Os olhos parados no teto, esse tempo todo. Esses dedos, essa mentira toda. O tempo parado no teto. Pernas mentirosas, olhos atrofiados nesse tempo todo no teto corroído. Mentiras atrofiadas, nesse tempo todo que corroeu.


Texto: Duane Valentim