terça-feira, 26 de janeiro de 2010

Le Cirque



E o vento se veste de cinza e corre por entre as ruas onde ela está. E é fácil de enganá-la. Basta assoprar algumas palavras aveludadas, assoviar no ouvido da dor ou fazê-la fechar os olhos diante da poeira que ele próprio levanta.

E o vento se faz de amigo e se senta diante dos pés dela. E é tão fácil de fazê-la sorrir. Basta agitar os cantos da alma, bater as portas antigas e escancarar as janelas de vidro que ela insiste em lustrar.

Mas o vento vem vindo de longe. Nunca se sabe qual das esquinas o fará parar.

E é difícil de enganá-lo.
E ela não o vê.
E ele se aproxima.
E ela abre os braços.
E ele a envolve.
E ela não respira.
E ele passa. Levou tudo dela.
Que palhaça!


Texto: Duane Valentim
Imagem: Filme : The Science of Sleep

domingo, 24 de janeiro de 2010

Valsinha



Era a noite da ansiedade.

Ele entrou pela porta e correu seus olhos de encontro aos olhos dela. Ela sorria com o coração e apenas esboçou um leve gesto de cumprimento.

O som da voz dele fazia com que os seus pés se encolhessem por de baixo da mesa e se agitassem. O sorriso macio e calmo dele abria nela as portas da imaginação. Os sonhos todos saltavam pelo brilho dos olhos dela.

Era a noite da ansiedade.

As mãos dele tocaram as dela. Trocaram algumas palavras que ela não lembra. Ela procurava nele os sons. Ele tocou. Ele tocou para ela todas as músicas que há tempos ela não ouvia.
Ela sorria e sentia. Ouvia e sorria.

Era a noite da alegria.

Eles se completaram de poesias no silêncio de um abraço infinito. E eles se gravaram pelos olhos um do outro e se entenderam com os dedos enlaçados. Despediram-se infinitamente da noite tranqüila e veloz.

O sino tocou.

Serão as noites da saudade.



Texto: Duane Valentim
Imagem: Noite estrelada - Van Gogh

quinta-feira, 21 de janeiro de 2010

Duplo

São feitos de palavras, de sorrisos perdidos e olhares trombados.

São mãos que se tocam, se prendem, se afastam.

São feitos de açúcar, de algodão doce e chocolate.

São pés que se esbarram, se aproximam, se gastam.

São feitos de pôr-do-sol, de arco-íris e de chuva fina.

São beijos que se buscam, se encontram, se calam.

São feitos de sal, de água e de mar.

São cabelos que se soltam, se enlaçam, se prendem.

São feitos de sonhos, de magia e de alegrias.

Bagagens...



Texto: Duane Valentim

sábado, 16 de janeiro de 2010

A Espera


E ela esperou. Não sabia bem o que, mas esperou. Ficou num canto calada vendo as pessoas passarem de lá pra cá. Cutucou todos os cantos de seus dedos, enrolou fechos de cabelo. Bateu os pés num ritmo alheio ao som que tocava e sorriu para todos os conhecidos que passavam.

Ela sentou e esperou. Olhou para si e sentiu pena do que via. Por que esperava? Qual o momento mentiroso que a fez querer esperar? Para que olhar tanto para a porta, ele não vem. É tarde. 

Ela se foi. Calou a lágrima que insistia em gritar, engoliu o soluço que insistia em saltar e trancou o coração que insistia em amar.

E ela se foi. Andou pelas ruas vazias iluminadas pelo silêncio de sua solidão. Tinha todos os motivos para entender que ele não viria, mas ainda olhava para trás na esperança de ver surgir, entre uma esquina e outra, o rosto que tanto imaginava.

E ela calou.

Ele não veio. Machucava. Se ele viesse, depois machucava. Feridas machucam perto, longe, sem precisarem ser cutucadas. São feridas e ele nem sabia o que nela havia cravado. Eis o mal de todo ele que rouba o ela do hoje sem saber que amanhã ela espera. E o amanhã vem. Ele não.


Texto: Duane Valentim
Imagem: Modigliane

domingo, 10 de janeiro de 2010

Acalanto

Sorria menina, sorria. Há tanta gente te olhando. Sorria para disfarçar todos os buracos que carrega ai dentro. Há tanta gente por perto. Há tanto detalhe encoberto.

Se arrume menina, se arrume. Maquie toda e qualquer imperfeição. As gentes não merecem saber da sua solidão. Pinte os olhos e a boca com cores de fingimento e passe um pó para tapar os trincos da agonia.

Alise cada fio de dor, cada frizz de amor, cada gesto de pavor. Seque as lágrimas e sorria, menina. As gentes não se importam com o que você carrega. As gentes só se importam com o como você carrega. Não vale chorar, não vale sofrer, não vale gritar, não vale se esconder.

Apareça menina, apareça. Sempre sorrindo. Cabeça erguida. Passo firme. As gentes precisam saber que você esta bem. Precisam se distrair olhando para os detalhes de fora e assim, nunca repararão no fardo que carrega ai dentro.

E entenda menina, entenda...haverá um momento em que fingir para as gentes inclui fingir para si mesma e que neste jogo de faz de conta, um dia você se dá conta que o vazio que te ocupava foi preenchido por momentos opacos, tristes e mentirosos e que, por terem sido acumulados durante tanto tempo, já não mais descolarão. E que por terem sido acumulados durante tanto tempo, nem mais te incomodarão.

Sorria menina. Sorria...



Texto:  Duane Valentim
Imagem: Renoir

segunda-feira, 4 de janeiro de 2010

Coxia

Foi a primeira vez, depois de tanto tempo, que meus olhos tocaram os seus carregando mãos diferentes.

Já havia visto e sentido outros carregares seus. Já havia sentido e doído de diferentes formas. Já havia visto seus olhos em outros olhos e suas mãos em outras mãos.

Já havia sorriso com o peito ferido. Já havia fingido não ter visto e, entre tantas e tantos, já havia aprendido a não fazer doer.

Eis que pela primeira vez, ocupados, meus olhos não te buscaram. Fecharam-se diante do ar fresco da noite e calaram outros olhos, que não os seus.

E na aventura desaventurada de qualquer madrugada silenciosa, fechei meus olhos cansados e tristonhos para todo e qualquer movimento que me fizesse recordar você.

E foi a primeira vez que vi sem precisar te ver.



Texto: Duane Valentim
Imagem: Pintores D'Avinci (Kim Molinero)